segunda-feira, novembro 12, 2007

A Aparição _ Vergílio Ferreira

Bem, de todos os livros que li, este teve uma franca notoriedade pela franqueza das palavras, sem cuidado com as acentuações.. enfim, uma realidade real da emoção do narrador, Alberto.
Fiquem entao com uma citação de este pequeno grande livro.
Fiquem então como um aperitivo do nosso Vergílio! Bom apetite!




“ – Todos os mortos se fazem rogados – explicou-nos. – Então a gente pede e eles dão um jeito.
Céus! Onde a minha repugnância? Tudo me esqueceu. Corpo morto, carne morta. Como as pedras. Trabalho com aplicação, quase com gosto. As calças, a camisa, sapatos de verniz – os sapatos é o António quem lhos calça. Eis-te pronto, meu velho, para a grande viagem. Estás sereno, a face gravada de doçura, de perdão a tudo, à vida, à morte. E uma comoção lenta humedece-me os olhos. Vou até ao meu quarto, abro as janelas para a noite. Então bruscamente ataca-me todo o corpo, as vísceras, a garganta, o absurdo negro, o absurdo córneo, a estúpida inverosimilhança da morte. Como é possível? Onde a realidade profunda da tua pessoa, meu velho? Onde, não os teus olhos, mas o teu olhar? Não a tua boca, mas o espírito que a vivia? Onde, não os teus pés ou as tuas mãos mas aquilo eras tu e se exprimia aí? Vejo, vejo, céus, eu vejo aquilo que te habitava e eras tu e sei que isso não era nada, que era um puro arranjo de nervos, carne e ossos agora a apodrecem. Mas o que me estrangula de pânico, me sufoca de vertigem é teres sido vivo, é tu estares ainda todo uno para mim, na memória do teu riso, no tom da tua voz, que era lente, sossegada, nas ideias que punhas a viver entre nós, na realidade fulgurante de seres uma pessoa. Recordo-te totalizado, olho-te. Que é que te habita, que é que está em ti e és tu? Não, não é a carne, não é o corpo: é aquilo que lá mora, aquilo que ainda dura de ti nestas salas, neste ar, aquilo que eras tu, o teu modo único de ser, aquilo a que nós falávamos, atravessando a tua parte visível. E, no entanto, sei, sei que esse tu real que te habitava não era senão a sua morada; como o espaço de uma casa, a intimidade do home, são as paredes que o fazem: derrubada a casa, a intimidade que lá havia também morre... E desde quando o sei, desde quando? A verdade aparece e desaparece. Deus, a imortalidade e uma ideologia política e a sedução de uma obra de arte e a sedução de uma mulher – onde começam? onde findam? Sou um indizível equilíbrio interior. Vivi, agi, toquei com as mãos tanta ilusão consistente. Depois a ilusão desfez-se. Ficou, porém, o rasto do que toquei, o gesto das minhas mãos – essa ultima união com o que quis, acreditei. Então eu descobri que as mãos estavam impuras. Lavar-me, renascer. Deus está morto porque sim. Não foi bem, meu velho, porque me ensinastes a história da terra e do homem e dos bichos que já não há e de que há seres humanos desde há dois dias, isto é, desde há um breve milhão de anos, se tanto. Não foi por isso, não foi por isso. Foi porque Deus se me gastou. Sei só que não está certo que ele viva. Sei que ele é absurdo porque o é. Sei que ele está morto, porque não cabe na harmonia do que sou. Não cabe. Como não cabe a simpatia das mulheres que aborreci. Como não cabem as anedotas de infância, que já não têm graça nenhuma. Como não cabe nada do que já não sou eu. Não discuto, irra, não discuto! Sei lá porque é que uma anedota de que ri não tem hoje para mim graça nenhuma! Sei só que a não tem.

E, todavia, pesa-me como uma pata de violência a realidade da pessoa que somos. Há muita coisa a arrumar, a harmonizar, muita coisa ainda a morrer. Mas por enquanto está viva. Por enquanto sinto a evidência de que sou eu que me habito, de que vivo, de que sou uma entidade, uma presença total, uma necessidade do que existe, porque só há eu a existir, porque eu estou aqui, arre!, estou aqui, EU, este vulcão sem começo nem fim, só actividade, só estar sendo, EU, esta obscura e incandescente e fascinante e terrível presença que está atrás de tudo o que digo e faço e vejo – e onde se perde e esquece. EU! Ora este «eu» é para morrer. Morre como a intimidade de uma casa derrubada. Sei-o com a certeza do meu equilíbrio interior. Mas como é possível? Agora eu sou essa intimidade, agora eu sou o seu espírito, a sua evidência. “

Lagrima é Verão?

Ora bem.. Podemos avaliar esta frase magnifica que faz parte da letra do tema 'A flor da pele' do Roupa Nova do Brasil, excelente banda! Musicas de sucesso!

Seremos nós amigos de nós próprios, levitando-nos nos momentos inquietantes e horrificos da tristeza? Ou temos sempre alguem a nos apoiar?

E será o choro, um desabafo ou um pedido de ajuda?